Entrevista a Berri Blue
Sexta-feira, 6 de Agosto no estúdio da artista.
A entrevista foi realizada em inglês. Tradução de Inês Pires.
JK- Importavas-te se começássemos a entrevista a falar um pouco do teu percurso, estudos e o que fazes, em geral?
BB- Eu estudei na Irlanda, em Dublin, no National College of Art and Design. Fiz o primeiro ano de Design Gráfico, que detestei, porque, aparentemente era mesmo má a tudo! Lembro-me do Diretor de Departamento me puxar para o lado e me dizer “desculpa, isto se calhar não é a coisa certa para ti, talvez devesses experimentar belas-artes”, mas eu estava tipo “hm, quero encontrar emprego” (risos). Foi isso que a minha mãe sempre disse, se fosse para fazer arte, para pelo menos escolher design. Mas a minha secretária era a única com cola e tinta e porcarias, enquanto todos estavam nos portáteis a desenhar fontes e cenas, e eu sou terrível nisso.
E depois, troquei para gravura, e a faculdade tinha coisas muito bonitas de técnicas de gravura antigas, e litografia era tão fixe. Mas nunca me formei. Não tinha dinheiro para isso, e tive uma espécie de colapso mental, por isso saí, mas ainda fiz quatro anos. Mas não é preciso um diploma! E depois mudei-me para o Porto há cinco anos.
JK- Já lá vão 5 anos?!
BB- Já passou muito, muito tempo, sim. E lembro-me de ficar apaixonada pelo Porto. Adoro-o completamente! O Porto é a minha musa e eu acho a cidade espantosa! (…)
JK- Então, queria falar contigo porque o teu trabalho fala muito sobre o “eu”, e de como o “eu” se relaciona com as pessoas e com o mundo à sua volta. Por isso, estava muito interessado em ver a tua perspetiva, tanto como artista de rua como de alguém que fala sobre a saúde mental! Portanto, queria pedir-te que falasses sobre a tua prática. (…)
BB- Sim! Geralmente o que faço é arte [nt.: “fine art”, no original] nas paredes, gosto de pensar dessa forma. Portanto, não é realmente uma arte de rua, é mais como arte na rua.
E sim, eu pinto coisas muito pessoais, e sonhos e estados mentais. Montes de coisas sobre relacionamentos. Penso que nos últimos dois anos, desde a exposição que fiz contigo [“Miłość W Czasach Zarazy” na Urtiga Gallery], foi um ponto muito forte para mim, porque comecei a pensar e a trabalhar na exposição, e mal estava a acabar a pandemia aconteceu, por isso toda a lógica na altura em que realmente fiz a exposição – eu tive esta coisa pura, que de repente ficou genuinamente distorcida pelos efeitos da primeira vaga e do primeiro confinamento… (…)
Portanto, penso que houve muitos momentos em relação a como fui afetada, mentalmente, e em termos de relações, porque sou muito motivada por relações, creio. E tenho demasiados pensamentos (…).
O que realmente notei sobre mim durante a pandemia e sobre o trabalho foi que, apesar de sentir a necessidade de ser positiva quando estou a fazer Street Art, me sentia impelida a expressar de forma honesta o medo da morte, o isolamento, a desgraça geral, e expor isso.
Mas o que estou a dizer é que já tive aqueles pensamentos “caramba, talvez não devesse estar outra vez a pintar imagens da Morte com 2 metros!” Ou “talvez eu não devesse estar a pintar a Morte num cavalo, talvez isso seja mau”, mas era assim que eu me estava a sentir. Tal como as peças que fiz no ano passado, chamadas “The Summer Apocalypse” [O Apocalipse de Verão], pensei que talvez devesse ser mais positiva, mas depois penso que virar-me para toda esta ideia da morte era uma coisa natural. (…)
JK- E para falar desse elemento de intimidade e personalidade no teu trabalho, sentes que, devido a todo o contexto, mudaste a forma como apresentaste as coisas? Não só os teus temas, mas também a estética, ou mesmo os aspetos plásticos e técnicos do mesmo?
BB- Sim, estranhamente, sinto mesmo que o meu trabalho se tornou um pouco menos solto, a tentar ser esteticamente mais agradável de alguma forma. E penso que são os constrangimentos que tudo o que está a acontecer, sabes?
E uma coisa que eu acho, especificamente em termos de street art, e apesar de já estarmos quase do outro lado da pandemia, com a vacina e tudo… Senti-me tão profundamente desmotivada, porque muita da razão de ser da street art é o facto de ser um processo a duas partes. Uma parte sou eu, e a outra parte é deixar ir. E a parte de deixar ir deixa de ser significativa porque, deixamos ir e ninguém viu, sabes?
É que a parte disso ser visto é de facto crucial. Que é algo de que não me tinha apercebido tanto até esta pandemia. Perceber que eu precisava de ser vista através dos olhos de outras pessoas. O que é fantástico, perceber que existe um elemento de vaidade natural. Não é vaidade, não sei, mas é um processo.
JK- E faz sentido, porque o teu trabalho não é apenas pessoal, mas fala de conexão e relações, por isso faz sentido que ganhe significado quando é visto através dos olhos de outras pessoas.
BB- Sim. Então, no meu caso, senti-me muito desmotivada, e produzi muitas peças de que gostei muito, o que para mim nem sempre é o caso. É algo que vai e vem. (…) E é mesmo importante para mim dizer que produzi trabalhos de que realmente gosto, como na primavera deste ano, que eram peças grandes, muito coloridas e cheias de paixão, em grande escala e fortes. E eu coloquei-as e elas simplesmente iam caindo da parede e apodreceram, por causa da época do ano também, mas nunca seriam fotografadas, nunca iam reparar nelas, e seriam apenas pintadas por cima. E lembro-me deste sentimento muito profundo de desesperança adicionada à desesperança imediata de estarmos fechados dentro e fechados fora. Penso que o aspeto social da StreetArt é crucial. (…)
Sim, o aspeto social, neste sentido de “para quê?”. E a outra grande parte foi a Fine Art que é a galeria, exposições, e eu fui convidada a fazer algumas coisas, e desde o início quando estávamos a tentar – mesmo que eu vá, é preciso usar uma máscara, e é o aspeto quase socialite de ser artista, e conviver com as pessoas, e trabalhar nos projetos, e esse tipo de excitação, isso é que é a força motivadora para mim que, muitas vezes, contrabalança a intensidade pessoal do próprio trabalho. Essa parte desapareceu e ficou apenas a intensidade, mas nada do alívio.
JK- E o teu trabalho tem essa carga imensa de expressão, até pela gestualidade. Sentiste que esse elemento em particular mudou, por causa de todas estas mudanças?
BB- Falando no sentido físico?
JK- Sim. Por exemplo, na Urtiga Gallery criaste um forte sentido de dualidade, com duas peças contrastantes, uma muito calma e outra incrivelmente agressiva na sua expressão.
BB- Sim, eu gosto imenso dessa pintura! Reparei que sim, comecei a pintar de uma forma muito mais descontraída. Descontraída no sentido da suavidade no pincel, não no sentido do cérebro, mas numa experiência muito física de pintar e trabalhar em geral. Encontrei alívio em não tentar que algo fique perfeito, embora esteticamente agradável. Comecei a usar mais cor e uma forma mais forte, mas relaxei o pincel… E acho isso muito mais satisfatório, porque é por isso que essa pintura é boa, porque a pintei enquanto estava a ter um episódio psicótico muito mau, e isso vê-se. Mas é por isso que gosto dela agora, porque é uma expressão de algo que senti genuinamente, em vez de ser apenas um uma imagem.
JK- Outra coisa de que queria falar contigo é dos azulejos, porque durante a quarentena começaste a trabalhar muito com essa técnica.
BB– Sim! Sim!
JK– Que é um processo diferente, muito mais cuidadoso e muito mais preciso.
BB- É! Fico tão entusiasmada com isso! Sim e não…! Então, descobri que, primeiro porque sou uma novata e não sabia exatamente o que estava a fazer, passei por muitas tentativas e erros. (…) Comecei a descobrir o que funciona e o que não funciona, e não queria mesmo fazer o branco e o azul, porque isso é o óbvio e eu não queria que fosse como se estivesse a tentar fazer a coisa tradicional, e por isso fiz muitas cores, experimentei técnicas diferentes. E sabes que mais? Há a porra de uma razão para as pessoas o fazerem!
É que fica bem! Mas, o que percebi foi que, como um meio, é tão maleável e quase escultural e muito apropriado à forma como pinto, porque a forma como pinto é muito escultural no sentido em que é física, tenho tinta na cara e nas mãos, uso uma colher de pau para raspar o verniz, é muito física. E com os esmaltes pode-se realmente trabalhar o azulejo, e é por isso que uso chacota crua com os lápis de tinta, e depois raspo-os no esmalte e empilho-o e faço diferente… É escultural. E também adoro o elemento do caos completo, porque podes fazer realmente o que achas que vai ficar bem, e depois pões no forno, e pode sair tão diferente do que imaginaste. Fiz recentemente uma peça que te vou mostrar daqui a pouco, e claro que sabia que o azul, branco e vermelho ficam bem, mas tinha esta imagem na minha cabeça, só fiz esta imagem porque realmente gostei dela. Sim, esta imagem [mostra uma peça de azulejos representando ossos, órgãos, e elementos florais], fi-lo e parecia incrível, parecia que ia ficar espantosa depois do forno, mas nós cozemo-la e ficou péssima, horrível!
As cores não são bem o que esperavas que fossem. Ficou um bocado irregular, um bocado “eh”, sabes? Mas gosto mesmo disso, acho que é, A, obriga a uma certa humildade e B, é como com a street art, podes fazer alguma coisa e depois pô-la nalgum sítio, e torna-se uma coisa própria, e não há nada que possas fazer mais com ela.
Uma vez ouvi uma frase, “o único momento em que o artista é dono do seu trabalho é quando o assina, e depois disso já não é dono porque pertence aos olhos das pessoas…” Oh, é pretensioso, mas é o elemento de deixar ir que eu gosto porque está fora do meu controlo.
Mas para responder à tua pergunta sim, é um meio muito expressivo. De uma certa forma muito contida.
JK- Na verdade, tinha pensado nisso ao contrário!
BB- O que queres dizer com isso?
JK- Bem, sendo um processo tão técnico, imaginei que teria de ser muito mais cuidadoso, mesmo que nas tuas peças de azulejo veja muito desse elemento gestual e expressivo.
BB- Mas não, vês – aquele pepino-do-mar [aponta para um azulejo representando um pepino-do-mar], derramei água, ou chá ou o que quer que seja em cima dele, e fiquei tipo “oh porra”, mas depois foi ao forno, e aquele elemento da água derramada ficou amarelo, como as aguarelas ou algo do género, ficou espantoso, e esse é o meu preferido porque há este elemento de caos, e isto é como alquimia! É tão fixe…
Quer dizer, eu fiz gravura na faculdade, por isso é tudo intaglio, e mergulhar coisas em ácido e fazer coisas, e eu era má nisso porque não consigo fazer as coisas de uma forma precisa, mas quando havia a parte de fazer porcaria e experimentar, eu adorava isso. Então agora, não tenho professores a dizer-me que o que estou a fazer é errado, como usar as cores tradicionais de uma forma muito não-tradicional. Estou a fazê-lo à minha própria maneira
JK- E começaste a experimentar muito mais com isto durante a pandemia. Foi uma tentativa de encontrar uma coisa nova durante os tempos mais duros, ou simplesmente veio por acidente?…
BB- Bem, como eu disse, tive uma comissão. É uma resposta aborrecida.
JK- Mas continuaste a explorar a técnica!
BB- Sim, porque eu me apaixonei por isto! Apaixonei-me profundamente por isto, não posso não o fazer agora, é a minha nova coisa favorita, eu adoro isto! Pintar com vidro, isso é tão fixe. Estou mesmo obcecada.
JK- E então como lidaste com o facto de que essas coisas novas estavas a fazer talvez não fossem vistas durante a pandemia?
BB- O aspeto da permanência… Então para mim, penso que foi um bocado como um antídoto para aquele sentimento das coisas não serem vistas. Embora algumas pinturas possam cair da parede ou ser pintadas por cima, isto pode ficar um ano sem ser visto, mas depois ainda lá está e as pessoas acabam por vê-lo. É uma forma de abrandar e de pôr fé em algo…
Sabes, o que é muito interessante é que me lembro de quando fiquei genuinamente deprimida por causa do confinamento, e houve momentos na Primavera em que foi difícil, e a solidão parecia uma coisa física, tangível, num sentido de, tive de me olhar ao espelho para verificar se ainda lá estava… (…) E isso é algo de que a minha mãe falava sempre, ao sentir-se solitária, isso é algo que ela fazia, e eu percebo, caramba, ela tem razão, é uma experiência tangível e quase física, de desaparecer, porque não há nada semelhante, sabes?
E lembro-me, o que me deu alegria, quer dizer, alegria não, mas esperança, foi plantar sementes em pequenos vasos, como girassóis e outras coisas. Pensei “OK, agora estamos em Fevereiro, e é tudo miserável, e não consigo ver ninguém, e isto parece um Inverno eterno, e desespero, mas pões esta semente num vasinho e podes vê-la crescer. Se está a crescer, significa que o tempo está a passar, e se o tempo está a passar então o Verão está a chegar”. E essa foi a minha forma de lidar com isso.
O mesmo acontece com os azulejos. É um processo. Pões na rua, e será visto. Mas não agora. É um processo lento, mas há uma lógica, há um objetivo final, que é a permanência, porque é uma coisa viva, em movimento… E com pinturas não se percebe isso.
O meu meio favorito é a pintura sobre papel de jornal, e é tão horrivelmente não permanente. E eu adoro, adoro que fique amarela ao sol, e que se desmorone. Acho-a lindíssima, é uma coisa viva, mas também é tão desoladora, porque se desintegra nas tuas mãos, por isso é boa e má.
JK- Isso acrescenta-lhe uma certa beleza
BB- Oh sim, sim, absolutamente, mas não num mundo a
desmoronar-se (risos). Num mundo a desmoronar-se, quer-se algo tangível e
forte.