Um compromisso cívico e político que urge reconhecer.
Para fazer face à dispersão da investigação nos estudos culturais em Portugal, nove universidades e um politécnico – o Politécnico do Porto, através do seu Centro de Estudos Interculturais (CEI) – todos com sólidos historiais de formação e produção na área, uniram-se para fundar a RNEC – Rede Nacional em Estudos Culturais (www.rnec.org.pt), em finais de 2020. Em maio de 2022, a rede realizou na Universidade de Aveiro o seu primeiro congresso nacional, juntando sete dezenas de académicos, investigadores e representantes de 25 instituições universitárias e politécnicas, que se têm dedicado nas últimas décadas a este campo de estudo. Com mais de 300 visualizações na sua transmissão online, o congresso atingiu um dos objetivos principais da RNEC: mapear os estudos culturais em Portugal e promover parcerias entre as mais diversas entidades. Ao mesmo tempo, e pela primeira vez na história, uma académica portuguesa foi eleita para dirigir os destinos da prestigiada Association for Cultural Studies. Ana Cristina Mendes, da Universidade de Lisboa, será também responsável pela representação da Europa nesta associação mundial de investigadores, durante o seu mandato de 2022 a 2026.
No contexto desta conjuntura nacional e internacional tão favorável, urge colocar a questão: o que são afinal os estudos culturais? Mais do que uma disciplina no sentido tradicional, os estudos culturais são hoje uma área de investigação trans- ou pós-disciplinar e, por vezes, contra-disciplinar, isto é, indisciplinada e indisciplinadora. Não se tratando simplesmente de estudos sobre a cultura, esta área de estudos perspetiva-se nas tensões geradas entre uma conceção de cultura ampla, antropológica, e outra conceção de cultura estritamente humanista, nas palavras de Lawrence Grossberg. O campo dos estudos culturais não tem um estatuto definido, mas é precisamente aí que assenta o seu desafio, ao reconstruir o conceito de cultura e ao caracterizar-se por uma diversidade tanto de métodos como de objectos.
Na trajetória dos estudos culturais sobressai a construção dos laços interdisciplinares e interinstitucionais, a investigação sobre as sociedades contemporâneas e o encontro entre investigadores com formações e origens diversas, mas fortemente comprometidos cívica e politicamente com a cultura e a cidadania democrática.
A evolução dos estudos culturais.
Com origem em Inglaterra, em finais da década de cinquenta do século vinte, os estudos culturais emergem de forma definitiva e autónoma em 1963 com a criação do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCSS) da universidade de Birmingham, liderado por Richard Hoggart e Stuart Hall. Nomes como Raymond Williams, E. P. Thompson, Roland Barthes e Henri Lefebvre foram alguns dos seus inspiradores, marcados pelo marxismo estrutural de Althusser e Gramsci.
O interesse pelos estudos culturais alastra pela Europa e Estados Unidos com o impulso crítico que percorreu as humanidades, e em especial os estudos literários, durante os anos sessenta do século vinte, no contexto particular das lutas estudantis contra as práticas institucionais e as tradições, que levaram à transformação das universidades até aí fechadas sobre si próprias. Durante os anos oitenta e noventa, essa reflexão autocrítica atravessou igualmente as ciências sociais, como foi o caso da sociologia, também ela obrigada a questionar conceitos tradicionais.
Os estudos culturais nasceram assim num clima de crises sucessivas e identificáveis: a crise dos estudos literários, o esgotamento do paradigma formalista e a falta de interação entre as humanidades literárias e a sociedade em geral. Ao longo do tempo, as humanidades e as ciências sociais foram convergindo na área dos estudos culturais, enquanto promoviam a cooperação com outras áreas do conhecimento, elas próprias obrigadas a uma reflexão global, a um descentramento e redefinição de fronteiras, assim como a uma reflexão crítica sobre as complexidades dos objetos culturais que abordam.
Deste modo, os estudos culturais estimularam a investigação transdisciplinar, ao darem atenção aos discursos marginalizados, trazendo à tona questões de raça, etnicidade, género e média e ligando-as, por seu turno, a temas até aí desprezados pela academia mas que influenciavam os debates na esfera cultural. O esbatimento das fronteiras disciplinares levou os investigadores dos estudos culturais a alargar os seus interesses a outros fenómenos, como a globalização e a desterritorialização da cultura, os movimentos transnacionais de pessoas, bens e imagens, as redes, o terrorismo, os choques civilizacionais e a crise ambiental global.
Com uma enorme influência e impacto nos meios académicos e não académicos um pouco por todo o mundo, desde os Estados Unidos da América aos países da América Latina, à Índia, China, Austrália e África, os estudos culturais são hoje uma área autónoma, já com longas décadas de formação e produção de conhecimento.
Os estudos culturais em Portugal.
Em Portugal, foi sobretudo a partir da reforma de Bolonha, em 1999, que a área dos estudos culturais, tradicionalmente dominada pelos estudos literários ou dispersa por outras áreas das humanidades e dos estudos artísticos, se tornou um campo do conhecimento autónomo, mas com uma componente fortemente interdisciplinar com as ciências sociais, nomeadamente a sociologia, antropologia, estudos dos média, estudos de género e ciência política, entre outros. Esta interdisciplinaridade é também atravessada por um intenso debate teórico.
No que diz respeito ao ensino e ao domínio da investigação, os estudos culturais têm-se desenvolvido notavelmente na última década, com a oferta crescente de mestrados e doutoramentos e a realização de congressos nacionais e internacionais. Destacam-se os sete congressos realizados pelo Centro de Línguas, Literaturas e Culturas (CLLC) da Universidade de Aveiro, bem como o lançamento de diversos livros e revistas, nomeadamente a Revista Lusófona em Estudos Culturais, a primeira em Portugal dedicada especificamente aos estudos culturais, cocriada em 2013 pelas universidades de Aveiro e do Minho.
Em 2020, a constituição da Rede Nacional em Estudos Culturais (RNEC) estabeleceu como objetivo principal o reconhecimento formal, por parte das entidades competentes, da existência desta área científica, facto que, por si só, eliminaria as dificuldades no acesso a programas de apoio e na avaliação dos cursos em estudos culturais. Ao instituir-se como organização e ao realizar o seu primeiro congresso nacional, sob o tema “Cartografias, Desafios e Possibilidades”, a RNEC conseguiu demonstrar a real dimensão dos estudos culturais na academia portuguesa e, com isso, chamar a atenção para uma área de investigação que, embora relativamente recente, tem já um espaço firmado no nosso país em termos de formação graduada e pós-graduada. Simultaneamente, ao promover a estruturação do campo e ao estimular a cooperação nacional, a RNEC fomenta a produção e a pesquisa na área, ao divulgá-la através da articulação com outras redes nacionais e internacionais. As iniciativas da RNEC terão continuidade já em abril de 2023, com a realização do segundo congresso da rede, desta vez na Universidade do Algarve e subordinado ao tema “Cidadania Digital e Culturas Contemporâneas”, sempre com o objetivo de afirmar os estudos culturais como uma crescente referência nacional e internacional.