27 October 2016 | 15.00 | ISCAP
ABSTRACT
Em 1992, a Comunidade Europeia criou um estatuto jurídico que visava contribuir para a formação de um sentimento de pertença a uma nova entidade política criada pelos Tratados. Estabelecido pelo Tratado de Maastricht que «é cidadão qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-membro» e não podendo a então Comunidade Europeia atribuir, por si própria, cidadania europeia, a nacionalidade começou por ser o elemento de conexão para um indivíduo ser titular de tal status. Todavia, a evolução jurisprudencial neste domínio demonstrou que a nacionalidade cedeu vez à residência, transformandose esta em requisito para a atribuição dos direitos em que se consubstancia a cidadania europeia. Tratase, portanto, de um estatuto de sobreposição do qual resulta que um indivíduo tenha uma nacionalidade e duas cidadanias!
Este estatuto fundamental que assiste aos nacionais dos Estados-membros envolve uma dimensão política, psicológica, cívica e social. Por força deste atributo reconhece-se a todos os cidadãos, entre outras faculdades, o direito de entrar, circular e de residir noutro Estado (ainda que cumprindo requisitos); obter vantagens sociais nos mesmos termos do que os nacionais dos Estados onde se encontrem (ainda que não incondicionalmente); participar nas eleições municipais e para o Parlamento Europeu; participar civicamente na vida da União (vertente interna); e usufruir de protecção diplomática e consular por parte de qualquer Estado-membro sempre que se encontrem em Estados terceiros onde o seu Estado não tenha representação (vertente externa).
Sendo certo que o direito de livre circulação e de permanência (art. 21.º TFUE) constitui o núcleo destes direitos e não obstante o seu cunho excludente – distinguindo cidadãos europeus e nacionais de terceiros Estados – foi-se registando uma tendência do TJUE no sentido de expandir o seu conteúdo. Nestes termos, não só os cidadãos migrantes se descobriram abrangidos pelo véu protector destes direitos: partindo das liberdades fundamentais de mercado, o Tribunal dissociou o conceito de trabalhador e de cidadão, desvinculando-o da justificação económica das liberdades e da mobilidade transfronteiriça – esbatendo a diferença entre indivíduos activos e não activos; estáticos e dinâmicos; e incluindo na sua protecção os familiares originários de Estados terceiros. Numa palavra, humanizou os trabalhadores, emancipando-os da sua inicial condição de elementos de produção, ainda que a existência de recursos económicos suficientes e o prévio exercício da circulação possa condicionar o gozo daqueles direitos por parte de indivíduos não activos.
O problema que aqui trazemos parte de três premissas, ilustradas pela jurisprudência que se vai apresentar (ainda que de forma breve) quais sejam: I) O princípio da não-discriminação alargou o alcance (pessoal e material) da cidadania; II) expandiu as liberdades para além do mercado; III) a própria cidadania é fonte de direitos fundamentais, também de natureza social.
Ora, assumindo que a livre circulação implica um certo grau de solidariedade financeira transnacional, é nossa intenção descortinar se o argumento da sustentabilidade dos sistemas sociais nacionais relativiza o alcance destes direitos. Ou seja, o que pretendemos trazer à discussão é se a vertente social da cidadania – enquanto expressão da solidariedade consagrada na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – constitui ainda um desiderato europeu.
O receio de que o exercício dos direitos que assistem aos cidadãos possa esmorecer e que a sua plenitude se revele, a final, uma desoladora “concha vazia”, leva-nos a acompanhar o percurso do Tribunal com vista a descortinar se aquela instituição não estará a involuir na protecção que confere a estes direitos tão essenciais ao aprofundamento de uma identidade comum europeia.