Por João Kendall
Nota introdutória: mais do que mostrar imagens, achei essencial contar a história da galeria, sem deixar nenhum momento ou pessoa de fora. Ainda assim, tal não foi possível: para lerem o texto na íntegra, será necessário aceder ao website da zine. Caso queiram ver imagens, sugiro a consulta do instagram da Urtiga: @urtiga_collective
No momento em que estiverem a ler isto, é bem provável que a Urtiga Gallery tenha fechado há já mais de um ano.
A Urtiga funcionou na Rua da Fábrica, no centro do Porto, entre o dia bissexto de 29 de Fevereiro de 2020 e 18 de Outubro do mesmo ano, sofrendo ainda um interregno entre meados de Março e inícios de Julho, devido ao primeiro confinamento. Durante este período organizámos 9 exposições, para além da exposição coletiva permanente. Quase todas elas, de uma forma ou de outra, falaram ou sofreram o impacto do Covid e das suas sucessivas vagas. E quero falar aqui um pouco sobre como isso aconteceu.
O coletivo era constituído por 7 artistas: Arisca, Bruno Lisboa, Drako, Oaktree, Itay Peleg, Veshpa e Ser. Eu ocupei o cargo de curador, sendo que as restantes tarefas foram divididas de forma orgânica pelos restantes membros. Todos estes artistas interviram no espaço, através da pintura dos diferentes espaços da galeria.
O facto de não estarmos a ser cobrados pelo uso do espaço permitiu-nos criar um espaço totalmente dedicado à comunidade: não precisávamos de nos preocupar demasiado com vendas ou lucros, pelo que preferimos focar-nos em dar abrigo a artistas ligados à street art e graffiti portuense a quem, geralmente, não eram dadas muitas oportunidades, e oferecer-lhes espaço a preço justo. Durante todo o tempo em que a galeria se manteve aberta, mantivemos alguns espaços no andar superior exclusivamente dedicada a prints e pequenas peças de artistas exteriores ao coletivo.
No dia da inauguração do espaço, a 29 de Fevereiro ( que ficou registado em vídeo por Pedro Furão, que viria a colaborar connosco de forma regular), foi inaugurada também a primeira exposição individual do espaço, na sala pequena do andar inferior (a que carinhosamente chamámos “Uma Casa Portuguesa”). Originalmente, este seria o único espaço dedicado a exposições individuais, sendo após a reabertura de Julho adicionada também um outro espaço de exposição constituido por uma das paredes do andar inferior (que informalmente apelidámos de “A Parede”).
Durante as primeiras semanas abrigámos também vários workshops e eventos, do qual se destaca o Poeta Invicto, organizada por Somos Bipolar, e a performance “Was It Worth It?”, criada por Drako e executada por Joana Calhau e Tomás Gomes.
Esta primeira exposição individual, intitulada “Sandwich With an Old Jellyfish”, foi criada por Kasia Harciarek, artista de origem Polaca, mas residente no Porto. Com percurso pelo universo das técnicas clássicas de impressão, aborda constantemente o tema do sonho, tanto com fine print, como com pequenos autocolantes que deixa pelas ruas. Esta mostra foi exatamente um compilar e expressar de vários sonhos, através de inscrição de fragmentos do seu diário gráfico nas paredes, rodeando quadros e outras obras.
A primeira exposição pós-confinamento, que inaugurou simultaneamente com a reabertura de 11 de Julho, foi “Miłość w Czasach Zarazy”, aqui traduzido do polaco para “Amor em Tempos de Praga”. Esta exposição de Berri Blue (de novo, uma artista de origem Polaca, residente no Porto) começou a ser criada num contexto pré-pandemia, e originalmente debruçava-se sobre a temática das relações, sexualidade inerente a essas, etc. Com a vivência do confinamento, no entanto, a própria temática passou a ser a da tensão em relações devido à pandemia e o impacto de vivência conjunta na psique da artista.
No espaço da galeria a artista recriou o próprio estúdio, com secretária, materiais, elementos do quotidiano, e desenhos nas paredes, bem como com a inclusão de música ambiente, e a projeção de pequenos vídeos que a artista frequentemente partilha nas redes sociais. Para além disso, duas grandes peças criavam uma linha de força no espaço: à direita uma figura feminina, delicada, e à esquerda uma figura quase monstruosa, com formas expressivas. Todas estes elementos tentam falar sobre a questão da imagem pessoal e da fragmentação da imagem própria, potenciada pela pandemia: a pessoa real, a que é apresentada em momentos íntimos, a personagem que passa para o público e redes sociais…
A exposição seguinte, a primeira n’A Parede, foi “Already Dead”, de Dub, inaugurada a 31 de Julho. Este artista, um dos mais consistentemente ativos no graffiti portuense, é conhecido pelas suas personagens monstruosas, por vezes “zombificadas”. Nesta exposição o artista apresentou uma série de obras criadas durante o confinamento, representando na sua maioria animais esventrados e em decomposição, com referências a cemitérios, caixões, etc.
Uma mais-valia deste segundo espaço é que permitia também a pintura da parede de fundo. Neste caso, Dub criou uma paisagem quase apocalíptica, com nuvens de fumo provenientes de um carro da polícia destruído e em chamas. Aliás, toda a exposição obviamente circulava à volta da questão da morte. Embora este seja um elemento comum na prática do artista, aqui assumiu um papel central, dando às peças um tom negro e pesado, mas, simultaneamente, jocoso.
A 3 de Setembro inaugurou, n’A Casa Portuguesa, a exposição “Calha na Maré”, de Heitor Corrêa. Artista de origem brasileira, é conhecido pelos seus murais profundamente surreais, pintados com técnicas clássicas, mas assumindo uma estética urbana e contemporânea.
Toda a temática da exposição incidiu na noção de natureza urbana; o artista, acostumado a interagir e a representar o mundo natural, apresentou nesta exposição uma visão de casas, animais, e seres bizarros pintados por todas as paredes, chão, e até teto da sala, completo com algumas molduras de janela decoradas. No centro da sala, suspensa ao teto, uma enorme cabeça de gaivota tridimensional. Toda esta estrutura era complementada com sons de gaivotas e sinos de igreja, gravados em passeios ou no próprio apartamento do artista.
O foco era essa dicotomia: a vontade e necessidade de interagir com a natureza, e a dificuldade de tal num momento em que todos nos encontrávamos fechados em casa. O próprio título, referente a telhados e à selva urbana, fala também da necessidade de aprender a viver ao ritmo da vida, aceitando os diferentes momentos que nos são dados.
Pouco mais que uma semana depois, inaugurou n’A Parede, a 9 de Setembro, a exposição “Colar Pistão”, uma exposição coletiva de fotografia, com participação de Ana S. Carvalho, Bea Lopes, Cpolpa, LX Vandal Squad, Paleio, Pedro Furão, Rui Pedro Oliveira, e Teresa Nunes. Todos estes artistas, de uma forma ou de outra, têm experiência com street art e graffiti, seja por registarem intervenções, intervirem eles próprios na rua, ou criarem obras de street art baseadas em fotografia.
A ideia da exposição era falar do triângulo artista/street art/cidade, para mostrar como diferentes fotógrafos, habituados a lidar com a rua, vêem e percecionam a cidade; daí o título, “Colar Pistão”, uma expressão tipicamente portuense. O fundo, aliás, apresentava um mapa simplificado da cidade do Porto, juntamente com uma figura surreal de uma mão com um olho a segurar numa máquina fotográfica.
A 26 do mesmo mês inaugurou a exposição “RIP 719”, criada pelo sticker artist 719. A exposição apresentava-se como um funeral, onde, no centro d’A Casa Portuguesa, foi colocada uma campa e placa tumular para o projeto 719. Estavam expostas várias pequenas peças em papel autocolante, bem como a imagem pintada de uma morte, uma árvore, e um poema. Foi também apresentada uma performance-funeral, onde um pequeno caixão, representativo do próprio projeto, era enterrado.
A exposição apresentou-se como uma forma de pensar a morte, e a ideia de um fim do projeto: não com tristeza, mas com alegria pela possibilidade de renascimento criativo de algo novo. Naturalmente, esta linha de pensamento partiu não só da vontade de fechar a produção de stickers, mas do impacto da pandemia na forma de pensar do artista.
Por essa altura, recebemos o aviso por parte dos proprietários do edifício de que a reconstrução iria começar em breve. Assim, decidimos inaugurar 3 exposições diferentes no dia 10 de Outubro.
A primeira, “Possibilitas”, criada por Mariana PTKS, tomou uma outra parede no andar inferior que até aí pertencera à exposição coletiva. As peças apresentadas pela artista tratavam-se de peças de madeira com layers tridimensionais, pintadas com um dégradé suave com azuis, laranjas, e amarelos, e formas geométricas complexas a branco. As formas usadas faziam referência a elementos cósmicos (um tema privilegiado pela artista), sendo que a própria temática da exposição se debruçava sobre a ideia de mudança: não só a nível pessoal, mas também a nível espiritual. As imagens apresentadas, bem como o elemento técnico, foram desenvolvidas e aprofundadas durante os tempos de pandemia.
A segunda exposição, “5 Years of Sticker Culture Project”, foi criada por Pei Pegata para celebrar os 5 anos do seu projeto Stickem, um projeto de divulgação da cultura da sticker art. Resultou de um open call feito à comunidade internacional de sticker artists, sendo que estavam presentes quase 250 artistas, entre stickers, paste-ups, e pequenas peças. Esta exposição tomou conta não só d’A Parede, mas também de duas paredes laterais, usadas para a exposição coletiva permanente, onde foram suspensas várias tábuas cobertas com stickers, bem como do pilar central. Este foi um esforço feito ao longo de vários meses, culminando numa celebração da cultura e comunidade da sticker art.
A exposição final, montada n’A Casa Portuguesa, foi a “Silvado”, uma exposição coletiva onde foi pedido a vários artistas que contribuíssem com uma peça à sua escolha. Os artistas presentes foram alguns dos que passaram pela galeria ao longo dos tempos de atividade, seja com exposições individuais, prints, ou mesmo alguns artistas com que queríamos ter colaborado, num total de quase 20 artistas.
Será relevante referir que ficaram algumas exposições por fazer. À data de fecho, estava já no processo de criação uma exposição de mynameisnotSEM, com uma instalação multi-sensorial n’A Casa Portuguesa, e uma de Mesk, cuja temática provavelmente seria a da gentrificação no Porto. Contactámos também com ainda mais artistas, como Catarina Vaz, Francisco Fonseca, ou Jvmanji, com os quais adorariamos ter criado uma exposição.
Após isto, a galeria fechou. Ainda tentámos, reformulados em Urtiga Collective, permanecer no reino do digital, mas com o burnout a instalar-se, e com mais um confinamento na lista, tal revelou-se demasiado. Ficou o instagram (@urtiga_collective) como arquivo e memória.
Ainda hoje me perguntaram se achava que a Urtiga tinha sido um sucesso. Economicamente? Não, nem por isso, mas num ano como 2020, não era esse o objetivo. O propósito era criar um espaço para a comunidade da street art e do graffiti. Creio que conseguimos criar ligações, experiência, contactos. E conseguimos mostrar que o Porto sente uma necessidade imensa de um espaço como este.
Talvez um dia surja novamente.
Afinal, a Urtiga é uma erva danada.