Entrevista a Hazul
Quarta-feira, 18 de agosto, no estúdio do artista
JK- Obrigado, desde já, por este tempo que tiraste para esta entrevista! Queria pedir que fizesses uma apresentação muito rápida do teu projeto e do teu percurso.
H- Todo?! (risos) (…) Ora bem, o meu percurso. Eu comecei a pintar em 97, a fazer graffiti clássico, letras. Estive nesse processo só a fazer letras até 2004, mais ou menos. 2006 talvez, não tenho a certeza. Entretanto, achei que já não fazia sentido fazer letras, também fruto de algumas viagens, estudos e influências, conversas com amigos. Comecei a achar que devia expressar-me de outra forma na rua, e mesmo no atelier, porque foi quando comecei também a ter um atelier e a começar a pensar o que é que havia de fazer noutros formatos.
Optei por mudar a assinatura, como uma mudança de rumo e de estilo e de linguagem, e então, apesar de continuar com o processo de pintar na rua, adotei uma linguagem um bocadinho mais universal, por assim dizer. Ou seja, que permite uma comunicação muito maior com as pessoas, pelo facto de também estar na rua, e que também coincidiu com um certo processo interno meu. De procura interna, de uma descoberta, também de conhecimento histórico e das civilizações, e da parte mais dos astros, de toda a simbologia, geometria. Portanto, todo esse universo que me começou a interessar comecei a aplicar no meu trabalho, e, aos poucos, fui trabalhando neste estilo que tenho agora. Está bem? (risos)
JK- Perfeito! Agora, a tua prática tem uma relação muito íntima com a cidade, tanto pela ligação quase mística e espiritual ao Porto, como pela procura de um balanço entre o feminino e o masculino da cidade, tanto pelas formas como pelas cores. Por isso, se quiseres falar um bocadinho da tua relação com a cidade do Porto…
H- Ok! Sim, a minha relação é total. Primeiro, porque sou nascido e criado cá. Nasci num bairro, portanto sempre tive muita ligação ao sítio, à rua, ao brincar na rua, a conhecer espaços, respeitar os espaços. Sempre andei muito pela cidade, portanto conheço bem todas as ruas, sempre andei muito a pé. E depois, paralelamente, toda essa parte simbólica e histórica permitiu-me inserir isso um pouco no meu trabalho. Portanto, tanto a parte simbólica como a parte mais emocional também de… Como é que te hei de explicar?
É assim, não é que eu quando vá fazer uma peça esteja preocupado em expressar unicamente a cidade, mas, como a cidade está tão entranhada na minha pessoa, acaba por ser uma coisa meia natural. Aliás, o próprio nome que eu escolhi teve muita influência com a questão da cidade, que é uma cor bastante associada à cidade. Apesar de ter sido uma escolha mais íntima e pessoal minha, acabei por perceber também que a cidade acabou por influenciar a pessoa que eu sou.
E o facto de ter nascido num ambiente muito bairrista levou-me também a defender muito, e a expressar muito de uma forma que é associada aos habitantes. Com isso, também tenho um respeito grande pelas pessoas e pelos locais. (…)
JK- Para além dessa ligação mais pessoal com a cidade, inseres na tua prática muitos elementos simbólicos ligados à cidade, certo?
H- Sim, depois tem outra coisa que eu não falei. Que é aquela questão de a cidade do Porto ter dois símbolos grandes, que é a virgem e o Dragão. Apesar de eu não simbolizar isso diretamente, porque não tenho grande relação com a questão religiosa, a nível de organização. E, mesmo a parte do dragão, que está muito mais ligado à monarquia e aos reis, também não é uma coisa que me interesse muito. o que me interessa mais é essa questão do feminino e do masculino, e esse equilíbrio que há pouco falaste, que eu tento representar à minha maneira. (…)
JK- Bem, exatamente por causa dessa relação tão íntima que tu tens com a cidade, é que vem esta questão, que é importante para o Street Art Against Covid: de que forma é que a pandemia alterou os teus hábitos de criação? Seja a um nível estético, ao nível de técnicas, de espaços…
H- É assim, alterou um pouco, mas não alterou muito. Ou seja, eu tenho, há alguns anos, duas vertentes. Que é a vertente da rua e a vertente do atelier. Portanto, é um equilíbrio que eu tento manter. Nesta fase da pandemia, obviamente. Numa fase inicial, eu foquei-me mais no trabalho de atelier, visto que estava mais em casa e estava a tentar perceber, ainda, como é que as coisas se iam passar. E, portanto, não senti propriamente que estivesse a ser muito afetado porque conseguia ter um trabalho artístico, apesar de não estar a mostrar. Percebia que era uma fase temporária, por assim dizer.
Depois com a própria situação dos avanços, dos recuos, do confinamento e do desconfinamento e tudo isso… Sempre que abria um bocadinho confinamento, eu tentei voltar à rua outra vez. E sempre que fechou, eu voltei outra vez ao atelier, já a projetar coisas para futuramente fazer na rua. Isto de forma geral. Sendo que, obviamente, eu tinha sempre plano B, C, e D, para o caso da coisa se agudizar. (…)
Mas isso acontece tanto em pandemia, como, por exemplo, às vezes em viagens. Se tiver um mês fora, automaticamente venho com ideias novas. Portanto, esses momentos em que eu paro drasticamente o processo e fico mais fechado, acaba sempre por ter alguma transformação. Mas, para te ser sincero, não notei muita diferença porque são coisas que já fiz no passado, mesmo sem pandemia, ou seja, ficar alguns meses fora do Porto. Não recentemente, mas mais há uns anos atrás, ao ficar uns meses fora do Porto, vinham sempre ideias novas.
JK- Precisamente, tu és conhecido também por ter uma prática que está em permanente modificação, permanente procura, por adição de ideias, subtração de outras…
H- Sim, o meu trabalho é esse! O meu trabalho é progressivo, sempre foi!
JK- E algo que notámos ao longo destes meses é o facto de que, durante estes confinamentos, começaste a usar ou a recuperar técnicas diferentes. Voltaste a usar stencil, paste-up também, começaste até a deixar alguns dos elementos do processo de stencil na rua.
H- Claro que sim!
JK- Queres falar um bocadinho do porquê de recuperar esses processos? O que é que adiciona à tua prática?
H- Não foi propriamente a pandemia… Foi simplesmente esse ponto de paragem que me levou a ir aos cadernos de esboços recuperar algumas ideias.
Num processo de trabalho normal, quando temos trabalho constantemente em que temos um cliente ou uma galeria, que nos vão pedir um trabalho, por norma estão à espera ou a pedir trabalho semelhante ao que nós estamos a desenvolver nos tempos mais recentes. Ou seja, eles não estão à espera de te pedirem uma tela, e que tu apresentes uma coisa completamente diferente. O que, às vezes, origina que tu, num certo período do tempo, dificilmente consegues fazer grandes evoluções porque estás constantemente a trabalhar, e vais somente repetindo os processos, mudando algumas coisas, mas não dá tempo para te aprofundares numa mudança mais consistente.
Nos períodos de paragem total, ou seja, um mês, dois meses, três meses, aí sim. Não tendo tantos trabalhos, nem tantas encomendas, permite ir buscar as ideias e reformular e fazer outra vez, repetir e mudar. E foi basicamente isso que eu fiz. Já há muito tempo que queria tirar, em alguns trabalhos, a linha, para não estar sempre a fazer com outline. Queria aproveitar para experimentar fazer mais mancha, sem ser tão figurativo. Assim umas experiências, coisas que já tinha na cabeça há anos e que aproveitei o tempo de paragem para experimentar.
Porque, por exemplo, numa situação normal, aquilo [aponta para uma peça] que é antes da pandemia, acho eu. Aquilo teria outline, pois agora já não tem. Mas, agora, estou a fazer umas coisas assim com mancha. Isso é para a exposição nova!
JK- Pois, uma das peças recentes que mais notei foi aquela [na Rua de Trás], um paste-up retangular abstrato feito com a placa de stencil que tens lá ao fundo! (aponta para placa de stencil na parede) (…)
H- Sim, mas agora estou a fazer mais assim. Ou faço só linha, ou, quando pinto, já não faço a linha. (…)
JK- Agora um tema um bocado mais geral: que modificações é que sentiste na cultura da Street Art e do Graffiti durante a pandemia? Sentiste maior presença de peças na rua, menor presença?…
H- (Risos) Ó pá… eu tenho uma visão um bocado pessimista em relação a isso… Pessimista, quer dizer, não é pessimista, é realista!
Eu pinto na rua há mais de 20 anos, portanto já vi muita coisa a aparecer e a desaparecer. Malta que estava com uma grande atividade, e, hoje em dia, já nem te lembras deles. Portanto, eu não acredito muito em atividade fugaz. Ou seja, eu começo a dar credibilidade a alguém que faz coisas na rua quando se mantém e tem uma continuidade em que se vê que a pessoa está com vontade de se expressar. Por isso, o período da pandemia, que foi um ano, um ano e tal… Para mim, não é suficiente para criar coisas novas, ou seja, não me parece.
Vi muito menos porque as pessoas saíam menos à rua. Eu próprio fiz menos na rua, porque havia restrições e estava ainda com mais riscos do que em dias normais.
Por isso, estás a perceber a minha perspetiva em relação à atividade na rua. Agora, fora isso, há intervenções espontâneas de pessoas que visitam a cidade, que vêm de fora, pessoas que têm um projeto qualquer ou querem fazer um projeto e fazem na rua, um stencil ou umas colagens. Isso há e é importante haver! Mas também era importante que houvesse um trabalho contínuo, como em algumas cidades, por exemplo Paris, em que as pessoas fazem alguns trabalhos na rua há 20 anos constantemente. Não quer dizer que façam todos os dias, mas que pensam na rua.
Por isso, a pergunta era se havia alguma diferença na altura do COVID? Não, foi tudo exatamente igual! (risos) (…)
JK- Uma pergunta a que já respondeste um bocado, mas que gostava que desenvolvesses: qual é que achas que é o estado da prática da arte de rua ilegal no Porto?
H- O estado? Acho que há algumas intervenções espontâneas que vão aparecendo, seja de pessoas de cá que têm alguns projetos, como de turistas que visitam a cidade. Temos falta de artistas locais que tenham uma intervenção mais constante e recorrente, e que olhem para a cidade e que pensem e que intervenham de uma forma regular. Acho que falta isso. (…)
Respondendo à pergunta: acho que quem faz coisas na rua, deve ter como foco principal fazer coisas na rua.
O ser apagado ou não já é uma consequência que, depois, a pessoa tem que ver como é que as peças se mantêm ou não. E, depois, pode adotar medidas diferentes consoante a limpeza. Sítios diferentes, táticas diferentes… Depois é uma questão a pensar, mas não se pode justificar o facto de a brigada [ anti-grafitos ] existir para não fazer coisas na rua. Como eu te disse, se me apagassem as coisas todas que faço agora, com certeza que iria inventar uma forma diferente de intervir. E estas pessoas que lá estão agora depois passam, e vêm outras, portanto tudo isso é uma coisa em mutação, e que não pode ser desculpa. Claro que, obviamente, se tiverem uma ação implacável de apagar tudo, é complicado, mas não é o caso. (…)
Não quer dizer, para mim, que não goste de ver uma parede com cartazes, stencil políticos, um ursinho de peluche…. Eu, por mim, gosto de ver paredes com várias coisas. E acho que o que as pessoas deviam fazer era lutar para que haja espaços legais de intervenção, cada vez mais na cidade, para isso ser possível. Existir essa diversidade que ainda não há no Porto e é uma falha que a Câmara tem.
Mas depois a intervenção ilegal na rua, já se sabe que está muito mais sujeita de ser apagada do que outra. Agora, não se pode culpar o artista do lado que não foi apagado, nem o critério da Câmara. Tem é que se perceber qual é o critério da Câmara, concordar ou não, mas isso cada um é que faz a sua avaliação. (…)
JK- Já falaste do facto da Câmara apagar peças, mas e o contrário? Qual o impacto da Câmara pedir e permitir novos murais? Achas que afetou a Street Art no Porto?
H- Ainda não, porque o programa de arte urbana está com pouca atividade. Portanto, ele foi reiniciado, por assim dizer. Fez algumas atividades no ano passado, este ano fez uma coisa ou outra, mas, na minha perspetiva, ainda está a arrancar. Ainda não teve um impacto. Para ter impacto têm de começar a fazer eventos maiores, trazer pessoas de fora, e ainda se está muito a trabalhar com artistas locais que nunca tinham sido convidados. E ainda está numa fase um bocado inicial. Eu espero que tenham a coragem de fazer coisas maiores. Vamos ver, é uma área de debate!
JK- Uma última pergunta: tu exploraste zonas novas da cidade durante a pandemia? Aproveitaste para ir a zonas novas ou espaços novos?
H- Zonas novas? Não foi a pandemia que fez isso. Como o centro está cada vez mais ocupado, e com cada vez menos espaços, é natural que eu vá expandindo um bocado a área de intervenção para outros sítios e que deixe para o centro intervenções mais pequenas, tipo [a placa de stencil na Praça da Batalha], ou como essa que tu viste, para aproveitar outro tipo de espaços.
Mas não foi a pandemia que me levou a sítios novos. Durante a pandemia, pintei em sítios mais escondidos para não ter tantos problemas, isso sim. Fiz três ou quatro peças em ruelas mais escondidas.
JK- Sentiste mais pressão?H- Não, porque estava naquela fase do recolhimento obrigatório. Eu ia sair e era o único na rua. Mesmo as colagens que fiz, eu era o único. Porque tínhamos o recolher obrigatório, que alguém dizia que não era legal, mas era até às 23h. Eu ia colar tipo à uma da manhã ou duas. Era a única pessoa na rua. Vias um carro a passar de vez em quando, porque havia sempre um Uber ou uma coisa qualquer. Mas estás a ver a Constituição? Não havia nenhum carro. Eu era o único gajo na rua! (risos) (…)